sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Mamãe

Minha mãe sempre foi birutinha, mas depois que ficou viúva pirou mesmo. Meu pai morreu no dia 23 de dezembro de 1984. Eu ia fazer 14 anos em fevereiro e minha irmã tinha completado 10 em outubro. Ta, deve ter sido muito difícil ficar viúva aos 36 anos com duas filhas, mas garanto que também não foi bolinho pra gente. Meu pai ficou internado um ano antes de morrer e minha mãe já tinha largado a gente nessa época: ela ficava o tempo todo com ele. Ia do trabalho pro hospital e vice-versa. Vinha em casa deixar a roupa suja, pegar roupa limpa, pagar a empregada e deixar dinheiro pra eu cuidar da casa. Eu fazia compras, levava e pegava minha irmã na escola e fazia o jantar. Dizia pra minha irmã que meu pai ia voltar pra casa. Nos fins de semana a gente ia visitar ele e a cada semana eu acreditava menos que ele ia voltar, mas continuava repetindo. Essa rotina me custou o ano na escola, fui reprovada pela primeira e única vez. Minha irmã passou de ano, pela última vez.

No dia que ele morreu eu tava em casa com minha irmã, se não me engano, era domingo. Eu tinha tomado banho e me arrumado, queria ir na casa da minha melhor amiga que ia viajar no dia seguinte pra passar as férias na casa da avó. De repente tocou a campainha. Assim que abri vi meu tio com uma cara péssima e entendi. “Seu pai morreu, você tem que ser forte e não pode chorar, sua mãe está muito mal”. Olhei e meu outro tio tava carregando minha mãe dopada e desmaiada no colo. Entraram e colocaram ela na cama. Meu tio mandou eu avisar todos do enterro no dia seguinte, às 11h. Peguei a agenda telefônica e liguei para todos os amigos da família avisando. Depois ele mandou eu pegar roupa pra gente para alguns dias e arrumar uma mala, pois iríamos para a casa dele. Assim fiz, apenas perguntei com que roupa se ia a enterros, mas meu outro tio disse que era melhor eu e minha irmã não irmos. Eles discutiram um pouco, mas acabaram concordando. Fomos pra casa do meu tio. Todos me olhavam com um jeito muito estranho. Liguei para a minha melhor amiga e ela pediu ao pai pra não viajar, pra ficar comigo, mas ele não deixou. Eles iam para Santa Catarina no dia seguinte de manhã e ela só voltaria na semana do início das aulas. Eu me tornei adulta nesse dia, mas já vinha treinando desde que meu pai ficou doente.

No dia seguinte me mandaram cuidar das crianças e descascar batatas pra adiantar a ceia de Natal enquanto eles iam para o cemitério. Quando voltaram, minha mãe chegou dopada, carregada e desmaiada. Ela quase nunca tava acordada nos meses seguinte e quando tava, gritava, me xingava e me batia. Ajudei minha tia um pouco, mas depois fui deitar. Na hora da ceia fui constrangida a levantar e participar, pois o nascimento do deus-que-não-existe era mais importante que a morte do meu pai e ele ia ficar muito puto e me fuder feio se eu não fosse comer o caralho do peru. Não lembro muito bem daquela noite. As pessoas me tratavam de maneira muito estranha, acho que o fato de eu ter perdido o pai causava constrangimento a elas, devia ser desagradável lidar com um menina de 14 anos com pai morto e mãe maluca. Foi nessa época que peguei a mania de pedir desculpas o tempo todo, mas também foi aí que descobri sempre sou capaz de fazer o que precisa ser feito. Também aprendi que preciso estar sempre pronta para estar sozinha.

Anos depois minha melhor amiga me contou que quando voltou em março percebeu que eu era outra pessoa, que não era a amiga que ela conhecia desde a segunda série primária e que ela tinha deixado no Rio em dezembro. Ela teve que se acostumar e aprender a lidar comigo de novo, mas como me amava nunca fez perguntas. Raramente falávamos sobre aqueles três meses. Hoje ela mora nos Estados Unidos, mas continua sendo minha irmã de coração.

Na mesma época que eu voltei meus tios falaram pra minha mãe que estavam preocupados comigo, pois eu tinha me tornado distante e estranha e que eu não tinha me importado com a morte do meu pai porque nunca chorei. Que eu só falava de coisas práticas, de resolver problemas, que nem parecia que tinha perdido o pai outro dia, aliás, nem parecia que eu tinha tido pai. Nunca vou esquecer do dia que minha mãe chegou do escritório do meu tio e disse “O Gil disse que você é maçante”. Nunca entendi bem isso.

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